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Para 42 haitianos, o recomeço tem endereço: Pomerode

dia, 12. O mês, janeiro. O ano, 2010. O país, Haiti (o mais pobre das Américas). A tragédia, um terremoto, o pior tremor de terra de sua história registrado nos últimos 240 anos, atingindo sete graus na escala Richter (que vai até nove).

1 de junho de 2015

O dia, 12. O mês, janeiro. O ano, 2010. O país, Haiti (o mais pobre das Américas). A tragédia, um terremoto, o pior tremor de terra de sua história registrado nos últimos 240 anos, atingindo sete graus na escala Richter (que vai até nove). O governo entrou em total colapso. Milhões de pessoas perderam tudo que tinham. Ficaram sem um teto, sem água, sem comida. Sem esperança, sem a mínima noção de como começar a se reerguer e a reconstruir sua pátria.

Uma tarde qualquer, daquelas que está prestes a chegar ao fim. Quando a maioria das pessoas se preparava para sair de seus trabalhos, buscar os filhos na escola e ir pra casa descansar, eis que vem o destino, a força da natureza e muda tudo, devasta com a história de uma nação inteira, enterrando cerca de 300 mil de seus filhos em covas coletivas.

A tragédia atingiu praticamente todas as famílias haitianas. Difícil era encontrar uma única pessoa que não perdeu alguém próximo. Os corpos das vítimas acumulavam-se pelas ruas a espera de identificação. Milhares de pessoas tiveram membros esmagados, e pela precariedade do atendimento médico, quase nulo em meio a tanto caos, tiveram que ser submetidas à amputação.

A capital do país, Porto Príncipe, viu aos prantos bairros inteiros desaparecerem. E com eles, hospitais, escolas, igrejas, prefeitura, abrigos, presídios. A Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu um alerta para riscos de epidemias como hepatite A, difteria, tuberculose, meningite e gripe suína.

Um pesadelo que parecia não ter fim. Acreditar em dias melhores era praticamente impossível. Até que o nome Brasil surgiu como uma possibilidade. O país conhecido anteriormente pelo carnaval e futebol, passou a ter um novo sentido para o povo haitiano através de um acordo assinado em 2012 para controlar a imigração irregular.

Do papel À realidade

A junção de uma necessidade e de uma vontade. Assim pode ser definido o projeto elaborado pela empresa Cativa Têxtil de somar ao quadro de colaboradores 42 haitianos que estavam em busca de uma oportunidade. Para o diretor presidente da empresa, Gilmar Rogério Sprung, ficar de braços cruzados e não fazer nada para auxiliar quem realmente deseja trabalhar, enquanto sobram vagas em Pomerode, era impossível e desumano. Que estas pessoas viriam para a nossa cidade, era uma realidade, assim como acontece em diversas regiões do país. A Cativa priorizou que estes haitianos ao chegarem tivessem um emprego e um alojamento, um caminho, objetivos. Um benefício mútuo para a empresa e comunidade.

 

A carência de mão de obra aliada a oportunidade de um recomeço

 

No início, a ideia parecia não ser a mais apropriada, mas rapidamente foi aceita. No primeiro momento há um choque, por conta da nossa cultura, identidade e características próprias de Pomerode. Mas, ao estudar a ideia e amadurecê-la, a única dúvida era como executá-la. E essa experiência eu já tive, explica.

Nessa hora o envolvimento dos líderes da empresa tornou-se uma realidade constante e os preparativos para receber os novos colaboradores, também. Trouxemos 42 haitianos para a cidade no formato de alojamento, em um local no centro, por conta da mobilidade, dando todas as condições de moradia a eles, como se fosse um mini-hotel. Envolvemos, então, os líderes de cada setor nesse processo, lembra a gerente.

Da seleção até Pomerode, cerca de 60 dias se passaram e muito trabalho foi realizado em conjunto com uma empresa experiente em recrutamento. A chegada ocorreu no domingo, dia 11 de maio, de madrugada. E, mesmo assim, Aline e Thayse, também do RH da empresa, os recepcionaram de braços abertos. Chegaram às 3h e foram diretamente para o alojamento. Nada mais apropriado, pois lá passaria a ser a partir daquele momento o lar deles.

A ideia do projeto é integrá-los, igualmente, a empresa. Desta forma, eles seguem tendo as mesmas oportunidades, direitos e deveres que todos os outros colaboradores possuem. Queremos que eles trabalhem conosco, mas que tenham suas próprias vidas, que sejam independentes. Será dada a oportunidade para que façam suas escolhas, porque sabemos que alguns deles podem não se adaptar a cultura ou ao trabalho, mas estamos com toda a vontade de ensiná-los, completa.

E quando o assunto é comunicação, uma vez que a língua mãe é o francês, Aline explica que isso não gera muita dificuldade. Muitos deles falam espanhol e todos prestam muita atenção em como e o que falamos. A comunicação até que tem sido rápida e fácil, afirma Aline.

Os haitianos também contam com o auxílio do intérprete Lúcio Silveira Aurélio, que morou por sete anos na França e também foi militar. Conheci muito do que mostram pela televisão, as realidades são ainda piores pessoalmente. E estar aqui participando disso é muito gratificante, é o outro lado do caos, a oportunidade de sonhar novos sonhos, de construí-los, de recomeçar, exalta.

O desconhecido para os haitianos que chegaram à cidade, também se torna novidade para quem os recebe, sem a experiência de inserir em suas rotinas um grupo de estrangeiros, com costumes e tradições distintas das vivenciadas pelos pomerodenses. Temos uma preocupação muito grande, o novo assusta um pouco. No primeiro momento os vimos calados e descobrindo as coisas, mas quando chegaram a empresa e viram o outdoor de boas-vindas, eles tiraram de seus bolsos uma pequena bandeira de seu país e pararam em frente para tirar uma foto. O momento foi de arrepiar, pois demonstraram paixão, fidelidade e amor à sua pátria, revela Aline.

Sempre com sorriso no rosto, educação em todos os atos e palavras, a adaptação não poderia ser diferente, senão excelente. Quando falamos desse projeto, no começo, percebíamos nas pessoas certa resistência, porque muitas delas não viajaram para fora do país, não tiveram contato com outras culturas, com a diversidade no geral. Entendemos isso, mas fomos preparando aos poucos as lideranças. Esse projeto é revelador, enaltece.

Para Thayse Symara Buerger, analista de recursos humanos, a experiência tem sido única e extremamente recompensadora, uma vez que a cada história traz lembranças de um passado nem tão distante, mas de tanta superação. No início do processo o receio era sobre a recepção deles aqui. No entanto, a convivência com cada um deles supera qualquer receio, inclusive as dificuldades com o idioma ou com a pronúncia de seus nomes. São pessoa, são vidas, são eles, mas poderíamos ser nós. A dor de uma catástrofe está sendo superada pela esperança de um recomeço. E todos os colaboradores da empresa estão envolvidos nisso, o que é extremamente recompensador, avalia.

Foi a responsabilidade e a busca por uma vida melhor que os trouxe até aqui. São homens que possuem famílias e que as deixaram para buscar, em um país que não conhecem, não falam o idioma, mas que abriu suas portas, uma oportunidade de recomeçar.

Apesar de o fato ainda chocar algumas pessoas, é importante frisar que mais do que trabalho, eles procuram um recomeço. Oportunidade. A ideia é essa, porque se fosse apenas mão de obra, buscaríamos em outros estados brasileiros. Fomos buscar pessoas que querem e que precisam realmente trabalhar, ressalta Aline. Um jovem como qualquer outro, hoje com 24 anos, na época da catástrofe morava com sua mãe e duas irmãs mais novas. Kendy André não trabalhava, quem provia o sustento da casa era a matriarca da família. Estudante, preparava-se para iniciar a faculdade de informática. Auxiliava na educação de suas irmãs e praticava sua grande paixão, o basquete. Isso tudo em uma cidade pequena, uma espécie de bairro de Porto Príncipe.

O semblante tranquilo percebido em Kendy no início da entrevista foi substituído por um olhar inseguro quando iniciou a contar em detalhes o que estava fazendo no dia do terremoto. Não perdi ninguém da minha família, mas perdi dois amigos. Eu tinha acabado de chegar em casa, após uma partida de basquete. Quando tudo começou a tremer, a desmoronar, minhas irmãs se agarraram nas minhas pernas. Minha mãe tinha ido ao mercado. Saímos correndo ao encontro dela, com medo que algo tivesse acontecido. Mas graças a Deus quando vimos ela estava também a nossa procura.

 

Sem a família, um homem inteiro, pela metade…

A vida de Sauve Pierre era boa e alegre no Haiti. Vivia, próximo a capital Porto Príncipe, com a esposa e três filhos, dois meninos e uma menina. Como fonte de sustento para a família, trabalhava como motorista de micro-ônibus. Fazia viagens de Santo Domingo, na República Dominicana, ao Haiti. Também transportava, por meio de caminhoneta, alimentos para comerciantes e supermercados na região.

Pierre é um homem de 41 anos, fará 42 em 1º de setembro. É regido pelo signo de virgem, e tal como sua influência zodiacal, é um homem que busca a estabilidade familiar e faz questão de estar junto com os seus entes queridos, coisa que não fez questão nenhuma de esconder durante a entrevista.

Chegou ao Brasil pelo Acre, em 02 de maio, na cidade de Rio Branco. Assim como outros haitianos, veio em busca de uma oportunidade de reconstruir sua vida e a de sua família, após a catástrofe. A família, não veio junto. Primeiro pretende se estabelecer por aqui, mandar dinheiro conquistado pelo emprego no setor de limpeza. Posteriormente vai trazê-los para viver aqui.

A jornada Haiti/Brasil foi longa, teve início em 15 de abril de 2014. Foram 17 dias na estrada, passando pela República Dominicana, Colômbia e Equador até chegar ao nosso território abençoado por Deus e livre de grandes catástrofes naturais. Desde então tem sido uma rotina puxada, cansativa e nada privada. Em Rio Branco, Pierre e outros compatriotas, foram instalados em um hangar fechado com uma lona. Comiam a mesma coisa todos os dias e tudo que tinha, além de seus pertences, era um colchão.

Veio para Pomerode de ônibus, foram cinco dias de viagem. Teve notícias do Brasil por meio de um irmão que vive em São Paulo e conseguiu o apoio financeiro por meio do pai. A saída do Haiti foi necessária. Mesmo após quatro anos da tragédia, o país ainda passa por revitalização e sofre pela falta de estrutura para sua recomposição. Pierre tenta não se lembrar daquele dia. Prefere considerar o recomeço como o início, sem os maus dias que viveu há quatro anos.

Ele fala pouco sobre o assunto. Estava trabalhando quando o terremoto começou e teve a visão do caos. Tudo começou a tremer e a cair, conta. Mas não pensou que fosse morrer naquele momento. Os filhos estavam em casa, mas conseguiram fugir em tempo, antes que a construção ruísse de vez. Do desastre, Pierre perdeu duas primas. Sem ter onde morar, a família ficou em um abrigo improvisado pelo governo. O cenário era devastador. Ruinas, pessoas correndo para todos os lados, corpos sem cabeça, gente com membros amputados e muitas mortes. Em meio a tanta tristeza e tragédia, Pierre contribuiu como podia, atuou como voluntário e ajudou a salvar vidas. Posteriormente recebeu uma nova moradia e buscou tocar o destino, até sua vinda para o Brasil.

Percebeu a drástica mudança quando chegou em Pomerode, mas gosta daqui, foi bem recebido. A única queixa é a falta da família. Desde que saiu de casa, não conseguiu falar com sua esposa e filhos. Não são todos que possuem internet no Haiti e as linhas telefônicas não tem ajudado. Até agora não conseguiu completar uma ligação para ter notícias das pessoas que ama.

Apesar de todos os percalços, uma coisa que não sai de Pierre é o sorriso. Ele, que ainda não aprendeu o nosso idioma, pretende trazer a família para cá logo. Em seu país de origem ele praticava a modalidade esportiva da musculação, que trabalha gradativamente no aumento da massa muscular. Aqui no Brasil, com a mesma disciplina que tinha para frequentar a academia lá, terá que ter para cultivar os novos alicerces de sua nova e inesperada jornada.

 

O responsável da casa, mesmo distante

Logo que foi possível, Kendy, assim como milhares de haitianos, se ofereceu para trabalhar como voluntário em uma espécie de organização que auxiliava tanto no resgate de sobreviventes, como no sentido de oferecer gêneros de primeira necessidade para aqueles que tudo perderam. Os mortos estavam por todos os lados, muitas vidas se foram em questão de segundos. Isso não tem como esquecer.

E eis que em meio a tanto caos, surgiu a oportunidade de vir para o Brasil trabalhar. Foi tudo muito rápido. Tinha um amigo que contou sobre a oportunidade que o governo brasileiro estava oferecendo para os sobreviventes, que desejassem vir para cá trabalhar. Conversei com minha mãe, que concordou na mesma hora. Comprei a passagem pela manhã e no outro dia arrumei minhas coisas, no terceiro já estava embarcando.

Mesmo sendo o único homem da família, que pelas tradições do país acaba sendo um pouco responsável pelos restantes membros, Kendy se viu em uma situação bem delicada. A vontade de garantir um futuro melhor para minha mãe e minhas irmãs que me motivou. Sempre serei responsável por elas, para mim não muda nada estarmos juntos ou separados. O que faço é pensando em cada uma delas. Quero uma vida melhor para nós. Não tinha outra escolha.

Como prioridades, André não pensa duas vezes antes de responder. Neste momento, quero me dedicar ao trabalho e depois continuar meus estudos. Quero muito estudar, aprender coisas novas. Mas o quanto antes for possível, minha prioridade é começar a enviar dinheiro para minha mãe. Ainda é muito cedo para dizer se vou trazer minha família para o Brasil ou se vou voltar após algum tempo. Mas se tudo der certo, se realmente as pessoas nos aceitarem, se for verdade que não existe diferença entre ser brasileiro ou haitiano, quem sabe eles não venham morar aqui?.

Mas engana-se quem pensa que chegar ao Brasil foi fácil. Ainda no Peru, o dinheiro que Kendy tinha já havia acabado. Contou com ajuda de uma tia, que mora nos Estados Unidos. Mas ele não estava só, em seu grupo, dois amigos não contavam com o mesmo suporte familiar e assim, não tinham dinheiro nem para comer. Ele e seus amigos dividiram o pouco que tinham com aqueles que certamente teriam morrido de fome se não fosse a solidariedade de seus irmãos de pátria.

A primeira impressão que ele teve quando conheceu no Acre as instalações disponíveis, era que uma nova catástrofe tinha acontecido. Uma espécie de tenda, com lonas na parte de cima e dos lados. Nada mais, colchonetes empilhados praticamente uns sobre os outros. As refeições eram as mesmas, todos os dias. Muitas vezes só café da manhã e almoço.

Já na Cidade mais Alemã do Brasil, a situação encontrada foi bem diferente. Já imaginávamos como era Pomerode mesmo sem conhecer. Vimos algumas fotos quando participamos do recrutamento. Não tem nem comparação com o que passamos antes. A recepção foi maravilhosa. Fiquei muito emocionado. Fomos muito bem acolhidos pela família Cativa. Uma empresa que não diferencia as pessoas, seja pela cor ou pelo que for. Estou muito orgulhoso de mim por trabalhar aqui.

Questionado se a acolhida que tiveram aqui minimiza a saudade de casa, Kendy responde: Sinto muita falta da minha família e dos meus amigos. Sinto falta de jogar basquete, de passear com meus cachorros. Mas é claro que ser bem recebido faz com que eu também me sinta em casa aqui.

Antes de encerrar a entrevista André arriscou algumas palavras em português, demonstrando que na adaptação não terá problemas. Apresentou-se, dizendo onde trabalha, em que turno, agradeceu a oportunidade, tudo isso, com o sorriso no rosto, que lhes é característico. Meu nome é André, trabalho na estamparia, no primeiro turno. Gosto bastante daqui. Obrigado.

 

 

Diebun Jose, 28 anos, pai de duas meninas, professor de educação física em uma escola. Não fosse pelo nome de pronúncia e escrita desconhecida, a rotina e vida de Jose, como é chamado, poderia ser comparada a qualquer outra em Pomerode.

 

No entanto, o destino quis que ele vivenciasse uma catástrofe, auxiliasse quem precisava e, ainda, buscasse por um futuro melhor para ele e sua família.

 

O jovem, no Brasil desde o dia 15 de abril, perdeu amigos e conhecidos na maior tragédia que seu país já vivenciou. E, mesmo diante de dificuldades, soube erguer a cabeça, respirar fundo e dizer adeus à sua família que permanece no Haiti.

 

O mais velho dos irmãos, de seis homens e três mulheres, Jose, conforme cultura de seu país, depois dos pais, é o responsável pelos seus irmãos mais novos. Além deles, suas duas filhas, de três e um ano e meio.

 

Jose, assim como outros 41 haitianos, chegou a Pomerode em busca de qualidade de vida e recomeço. E o trabalho exercido hoje, na cozinha da empresa Cativa, apesar de ser diferente do que efetuava anteriormente, é feito com orgulho e dedicação. Eu me adapto ao trabalho, pois trabalho para mim é liberdade. Tenho um convívio muito bom, dou risadas, estou me adaptando ao trabalho, que é diferente, mas, em compensação, estou tendo tudo que não tinha antes. Não canso de trabalhar, conta.

 

O esforço é reflexo da educação que recebeu em casa. Por ser o filho mais velho, sempre quis aprender de tudo para ter responsabilidade sobre a família.

 

Jose morava em uma pequena comunidade, perto da capital. E era lá que ele estava quando o terremoto atingiu seu país. Graças a Deus não aconteceu nada com a minha família na catástrofe, mas o país foi para trás e as dificuldades aumentaram muito. Em seguida, fui para a capital efetuar trabalho voluntário, após uma reunião com os professores da República Dominicana e Haiti para saber como poderíamos ajudar, afirma.

 

E foi nesse momento que algumas das cenas vistas marcarão Jose para sempre. Vi muitas pessoas mortas, pelas ruas, nos escombros, por todos os lados. Foram quase 300 mil mortos e essas imagens ficarão para sempre guardadas em meu espírito e na minha cabeça, relembra.

 

Apesar de a catástrofe ter acabado com a esperança de muitos haitianos, Jose não a perdeu e descobriu no Brasil a oportunidade para recomeçar. Desde que cheguei aqui algumas pessoas me disseram que não teria mais problemas. E, quando fomos recebidos no Acre, tivemos apoio do governo com a confecção da Carteira de Trabalho, do CPF e do incentivo para que pudéssemos trabalhar. Desde então sinto-me extremamente contente e orgulhoso por estar aqui e da forma como fomos acolhidos, frisa.

 

Jose e sua família nunca tiveram uma vida fácil e, por conta disso, esforço e força de vontade são duas palavras que o definem. Não posso dizer que era feliz no Haiti, porque não existe ‘a vida é bela’. Sempre trabalhamos muito e passamos bastantes dificuldades para poder ajudar toda a família, pois não tínhamos muitas coisas, conta.

 

As dificuldades também foram percebidas no trajeto para chegar até o Brasil. Fui de avião do Haiti ao Panamá e depois ao Equador. Então de lá até Rio Branco fomos de ônibus. Depois que atravessamos a fronteira não tivemos mais tantos problemas, mas nosso alojamento era apenas um galpão fechado nas laterais por lonas e coberto. As refeições eram entregues de manhã, ao meio dia e a noite e nossa cama era um colchão no chão, revela.

 

A mudança aconteceu mesmo com a chegada a Pomerode. De lá para cá, mudou totalmente. Quero dar os parabéns para a Cativa por nos trazer de lá até aqui e por tudo que nos ofereceram até agora. Aqui é totalmente diferente, é uma zona de luxo, o respeito das pessoas por nós é totalmente diferente do que tivemos lá, conta.

 

A recepção calorosa e a colaboração intensa são o que mais marcaram Jose até agora. A colaboração de todos em nos ajudar e receber. O espaço vazio que carrego no peito, por conta da ausência da família, da distância da pátria, já foi muito preenchido com esse calor humano que estou recebendo, enaltece.

 

E é esse mesmo calor humano que o surpreendeu. Aqui todos vieram nos dar as mãos, as crianças vieram em nossos colos. No Haiti, mesmo os brasileiros que lá vão, não fazem isso. Há uma barreira muito grande, aqui não vejo esse medo de chegar perto, é diferente, explica.

 

E quando o assunto é futuro, Jose frisa que as oportunidades, acessos e adaptações são fundamentais para que ele seja definido. Agora é muito cedo pra decidir as coisas, mas gostaria de trazer minha família. No entanto, isso depende dos acessos que eu e eles teremos, como educação, por exemplo. E tem, também, a questão de adaptação deles, comenta.

 

Para possuir esses acessos, Jose dedica-se aos estudos, pois, quando não está trabalhando, está estudando o idioma do país que o acolheu. Temos um dicionário no alojamento e já possuo algumas palavras com a tradução do francês para o português. Desejo terminar meus estudos, para poder ajudar minha família e meus amigos. Assim como já dizia o ditado filósofo não tem bateria, mas precisa das coisas. Penso em ficar, mas tudo depende. Se o governo que me ajudou precisar, eu vou ficar. Se a Cativa precisar, vou ajudar também, frisa.

 

A distância, no entanto, ainda é o que mais dificulta nesse momento. Minha família não tem acesso a internet e, até agora, só consegui enviar uma mensagem de texto a eles, pois a telefonia daqui não tem colaborado, completa.

 

Mesmo assim, longe dos pais, dos irmãos, dos amigos e das filhas, Jose sabe que o futuro a Deus pertence, mas que cabe a ele lutar para conquistar seus objetivos e sonhos. E se o sonho pode se tornar realidade, para Jose a chegada ao Brasil já faz parte dele.

 

Reconstruindo o futuro

As lágrimas secaram e a vida recomeçou. Uma história de tragédia e dor, que mudou de rumo e caminha para um final feliz.

 

Ele era um jovem comum, residente de Porto Príncipe, no Haiti. Morava com os pais, com o irmão e as duas irmãs. Levava uma vida tranquila. Frequentava a escola e tinhas muitos planos para o futuro. Queria fazer faculdade de tecnologia, era seu sonho. Ainda não trabalhava. Não tinha problemas, amava sua vida e sua família. Tinha orgulho de ser quem era. Gostava dessa vida e queria evoluir. Entretanto, uma tragédia fez com que tudo mudasse. Sua vida, seus estudos, seus planos. Um verdadeiro cenário de guerra, que tomava conta de um país inteiro.

 

Esta é a história do jovem Duponh Miche Louissaint, de 19 anos. O que era para ser mais uma tarde jogando dominó com os amigos, tornou-se a maior tragédia que ele já presenciara na vida. O terremoto que devastou uma nação inteira fez com que o mundo prestasse atenção em um território, até então, esquecido ou desconhecido pelo resto do planeta.

 

Cenas de terror foram vividas pela população que, em questão de segundos viu seu mundo ruir e desaparecer em escombros. Duponh lembra muito bem como foi o momento. Eu estava jogando dominó com amigos e de repente, tudo começou tremer. Olhei para o lado e vi tudo destruído. Por um momento eu pensei que fosse morrer. Parecia o fim do mundo.

 

Após a tragédia, as más notícias começaram a chegar. Duponh perdeu muitos amigos no terremoto e lembra as cenas que, até hoje, não consegue esquecer. Famílias inteiras mortas entre os escombros. Eu vi os olhos de todos os haitianos chorarem, conta. Trabalhando com voluntários desde o primeiro dia, ele ajudava na remoção dos corpos, os recolhendo até um caminhão, onde eram levados e jogados em uma cova coletiva.

 

Do dia para a noite, Duponh viu seu país mudar. Escolas, hospitais, presídios, e, a edificação de maior orgulho do povo haitiano, o Palácio Nacional, ficaram resumidos a ruínas. Segundo ele, muitos corpos nem sequer foram retirados dos destroços. Uma tragédia impossível de ser contabilizada.

 

Dias difíceis se passaram. Até que a esperança ressurgiu com um nome bem conhecido pelos haitianos: Brasil. O país que mandou milhares de voluntários para auxiliar nas buscas e atendimentos aos sobreviventes, aparece como o país que pode trazer uma melhor condição de vida. O governo brasileiro fez uma aliança com o governo haitiano para que eles pudessem vir ao Brasil. Assim, Duponh foi incentivado pela mãe a vir em busca de outra perspectiva de futuro. A contragosto, ele aceitou, e enfrentou quase um mês de viagem, passando pelo Panamá, Equador, Perú, chegando finalmente a Rio Branco, no Acre. Lá, ficavam em um galpão aberto, coberto por lonas. Dormiam em um colchão. Naquele momento, eu pensei em voltar, conta.

 

Mas então, chegou outra oportunidade. Uma empresa do Sul do Brasil que queria contratar haitianos para trabalhar em suas dependências. Duponh passou pelo recrutamento e foi escolhido para trabalhar na Cativa Têxtil, em Pomerode. Chegou no dia 11 de maio. Foi recebido de braços abertos pela empresa, que forneceu os recursos necessários para sua estadia na cidade. Eu sabia que aqui seria melhor. Mas superou as expectativas, exalta.

 

Uma nova moradia, um novo trabalho e uma nova vida. Duponh se sente feliz com suas instalações e com os novos companheiros de trabalho. Ele diz que todos o cumprimentam e são muito gentis. Nós haitianos amamos os brasileiros e já temos a impressão que eles também gostam de nós. Está um pouco cansado devido a esta fase de adaptação, mas muito feliz por ter encontrado uma nova vida e poder se reerguer. Pretende ficar no Brasil, continuar seus estudos e trazer a família.

 

E por falar em família, as lembranças estão sempre presentes. Duponh nunca teve o hábito de ficar longe da família e agora, sente falta de todos. Desde que chegou a Pomerode, já conversou com eles via internet, disponibilizada pela própria Cativa. Pais, irmãos, namorada, amigos. Todos ficaram no Haiti, aguardando a sua oportunidade de partir em busca de uma vida melhor. Saudade. Uma palavra unicamente brasileira, mas que já faz parte do dia a dia de um haitiano que deseja apenas reconstruir a sua vida, partindo das ruínas, secando as lágrimas do passado, agora guardado na memória. E olhando para um futuro próximo, onde dias melhores já começaram a nascer.

 

O ônus e o bônus de uma polêmica decisão

 

Para o diretor presidente da empresa, Gilmar Sprung, a decisão de contratar haitianos para trabalhar em Pomerode teve dois lados. De um, manifestações de apoio, de aceitação, de compreensão. De outro, a intolerância, o racismo e o preconceito, despidos de qualquer pudor. Para ele, fatores como caráter e vontade de trabalhar independem de raça. A legislação brasileira é branda, a impunidade reina, a justiça é lenta e protege o bandido. Este sistema estimula a bandidagem, que está presente em todos os lugares, independente de cor ou descendência. Para completar, os inúmeros tipos de bolsas que já abastecem mais de 50 milhões de brasileiros, só contribuem ainda mais com o aumento da malandragem, o que friso, independe da cor da pele. Não é a cor da pele que cria ou desenvolve a malandragem, mas sim o sistema brasileiro.

 

Gilmar Sprung declarou que está muito feliz por ver a adaptação dos haitianos em Pomerode, mas, principalmente, por ver o carinho e respeito com que grande parte de seus colaboradores tem se dirigido aos mais novos membros do grupo. Deveriam ser condenados a morte, por fome, só por causa da cor da pele? Eles não são bandidos, são gente do bem, pessoas que só querem trabalhar. Nós sabíamos que seria polêmico, mas o que me deixa pessoalmente muito feliz é a grande quantidade de manifestações de apoio diárias que recebemos, nós e eles também, tem gente branca de monte indo os visitar no alojamento para ver o que precisam, e acreditem, eles não precisam de nada, precisam só de trabalho para voltar a sonhar.

 

Por outro lado, ignorar o preconceito impregnado em algumas pessoas é fechar os olhos para uma ferida que ainda sangra no Brasil, mesmo com tantos avanços feitos neste sentido, da abolição da escravatura aos dias atuais. Algumas pessoas ignorantes manifestam-se contrárias, para alguns de repente, passei a ser persona non grata, sendo que estes, muitos de fora, se esquecem que também foram aqui acolhidos, só que como são brancos, eles podem, os negros haitianos que perderam tudo, não podem, afinal, tem gente que acha que eles representam uma ameaça à segurança. Tem gente achando que nós os trouxemos para exploração de mão de obra, para baixar salários, pelo contrário, antes de os trazermos, chamamos o sindicato dos trabalhadores e apresentamos o projeto. Eles terão os mesmos direitos e obrigações que qualquer colaborador, são celetistas e nossa relação com eles obedecerá 100% o que determina nossa convenção.

Porém, nos momentos em que teve sua decisão questionada, Gilmar Sprung agarrou-se na fé e em seus ensinamentos: Tem gente que frequenta as mais diversas igrejas, e que deve ter aprendido diferente do que aprendi, que devemos amar ao próximo como a nós mesmos. Pode ser que eu tenha faltado no dia em que ensinaram na doutrina que só deveria amar se fosse da mesma cor que eu, finaliza.

 

 

 

 

Em busca de um sonho: ajudar a família

Para a profissional de recursos humanos da Cativa Têxtil, Aline Tais Royer Pivetta, gerente de gestão de pessoas, contratada a pouco mais de dois meses, a experiência com haitianos não seria novidade e foi, inclusive, ideia sua. Quando cheguei a Pomerode percebi uma carência muito grande de mão de obra, por conta do crescimento da Cativa. Como já havia vivido essa experiência, sugeri a contratação de haitianos para compor nosso quadro, conta Aline.

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