Geral

Feito com o coração

O dia amanheceu preguiçoso naquela sexta-feira. As nuvens demoraram a subir, pairando uma neblina característica do vale.

1 de junho de 2015

O dia amanheceu preguiçoso naquela sexta-feira. As nuvens demoraram a subir, pairando uma neblina característica do vale. Mas, mesmo sem o sol dar as caras, mãos habilidosas e dedicadas já estavam no trato dos animais, ou no preparo da primeira refeição do dia. São 18 pares de mãos, cada um com sua função e que também têm uma rotina rígida para o reestabelecimento.
Assim como diabéticos, hipertensos ou cardíacos, uma pessoa não escolhe ser portador da doença chamada alcoolismo e também como em outras enfermidades, esta precisa de tratamento. Para isso, a Casa da Solidariedade atua em Pomerode há 15 anos, trabalhando na reabilitação de pessoas que desenvolveram a dependência do álcool, mas querem e precisam de ajuda para voltarem sadios para a vida.
Entre os que procuram auxílio na casa, encontramos diferentes histórias e entre uma conversa e outra, flagramos muitos olhares, a timidez e o medo também estiveram presentes, mas logo uma cuia de chimarrão era servida e junto a ela, um sorriso e a transmissão de confiança das amizades que são seladas através do companheirismo do dia-a-dia dos moradores que compartilham a vontade de mudar e de não recair.
Logo que o sol vai iluminando as flores do jardim, os mesmos braços que acolheram os que ali residem, recebem a equipe do Jornal de Pomerode com um sorriso na face, possivelmente o mesmo sorriso que também recebe aqueles que procuram ajuda. Loraine Valentine, gerente opercacional, nos mostra a casa, o refeitório, o campo, os dormitórios e áreas de convivência e ressalta: “Aqui eles têm uma rotina muito parecida com a rotina que há lá fora, a diferença é que aqui eles não podem beber, assim aprendem como devem agir quando estiverem lá fora de novo”.
O tratamento é delicado, exige paciência e persistência. Muitos têm recaídas, mas o importante é retomar para que tais recaídas sejam cada vez menos frequentes, até inexistirem. Diferente de terapias adotadas por casas de saúde, aqui não há quartos isolados, remédios fortes e sofrimento. Há alegria, amor, trabalho, companheirismo, dedicação e respeito. Lori, como é conhecida, trata dos “meninos” como se fossem irmãos dela. “A primeira coisa que eles recebem quando chegam aqui é o respeito, a certeza de que são dignos de voltar a conviver com a família, com a sociedade e amigos”.
Como toda casa de tratamento, aqui é preciso seguir algumas normas da Anvisa, para isso cozinha, refeitório, quartos e áreas de higiene foram adaptadas. Mas as cortinas, objetos e pequenos detalhes fazem dali um verdadeiro lar aconchegante e acolhedor que esses homens precisam para estarem prontos para encarar a batalha contra o álcool.

A decisão de uma nova vida
A sociedade ainda vê o alcoolismo como uma fraqueza, não como uma doença diagnosticável e controlável. Isso pode explicar a razão de muitos dos pacientes não aceitar ajuda e não procurar tratamento. Esse preconceito com a doença, com a dependência do álcool, deve ser tratado com seriedade na família e no grupo de amigos do doente e deve-se também incentivar a procurar uma terapia que auxilie na recuperação.
Lori nos conta que a vivência na casa tem o objetivo de fazer com que os que decidem passar um tempo ali consigam ficar longe do vício o máximo de tempo possível. Muitos chegam ali por decisão própria, outros são trazidos pela família e outros pela justiça. Alguns deles já estiveram ali outras vezes, mas por percalços da vida, voltaram para se tratar.
Cada paciente é tratado de maneira diferente e a justificativa usada pela gerente da casa é que cada um teve um encontro de maneira diferente com o álcool. “Se você quer saber o porquê que cada um deles se tornou dependente da bebida, precisa perguntar sobre como era a vida dele há, no mínimo, dez anos. É um conjunto de fatores que contribui para o desenvolvimento dessa doença”.
Assumir uma doença é um trabalho difícil e, muitas vezes, demorado em vários diagnósticos. Como beber socialmente é algo cultural no Brasil, os primeiros indícios da doença passam despercebidos. A dependência é algo sério e a aceitação do paciente é fundamental para o tratamento.
Entre o gramado verde, o pasto, a lavoura, pássaros, gado, patos e galinhas a vida se refaz e tudo que antes parecia perdido volta a ter um sentido. O respeito pela vida de cada um e a diferença e a exclusividade com que cada um recebe o tratamento é uma das formas que aqui se acredita ser a melhor de tratar.

O tratamento
Ao chegar à casa, quando atravessa as portas e é acolhido, a primeira etapa é o acompanhamento médico. Todos os internos consultam regularmente no posto de saúde do bairro. Alguns precisam do auxilio de medicações como antidepressivos, sempre prezando pela manutenção física e psíquica dos que se submetem à ajuda na Casa da Solidariedade.
Periodicamente os internos frequentam a sessões com uma psicóloga e são estimulados a conversar sobre a vida, sobre o que os levou ao mundo do álcool e o que influenciou na dependência da bebida.
Na casa, além do amparo na saúde e no lado psicológico, os internos têm liberdade religiosa e representantes das diferentes vertentes visitam os moradores, pregando a fé e contribuindo para que tenham um apoio a mais na travessia desse período difícil e decisivo na vida deles.
Com uma rotina rígida, o café é servido às 7h da manhã. Para isso, alguém já está tirando o leite das vacas. Depois, é a hora da laborterapia. Nesse momento, cada um desenvolve atividades na casa e para casa. “Eles são os responsáveis pela manutenção de tudo isso aqui”, acrescenta Lori. Em seguida, é a hora da convivência. Nesse momento eles conversam, tomam chimarrão e têm a oportunidade de compartilhar experiências e histórias de vida.
Na hora do almoço, todos se sentam nas cadeiras separadas em grupos de quatro, e a cada grupo, uma mesa. A claridade, limpeza, o cheiro bom de comida, as cortinas e os acabamentos em madeira dão ao refeitório o caráter de lar, onde a partilha da refeição faz do, que aí vivem uma verdadeira família, unidos para um mesmo fim.
A oração antes, a música e o agradecimento chegaram a comover até mesmo os jornalistas que foram incluídos nas preces do dia. A canção entoada por eles antes do almoço dizia: Se tu me amas de todo coração, mostre teu sorriso e aperte a minha mão. “A visita tem direito de se servir primeiro”, adianta Lori.
No cardápio havia arroz com brócolis e requeijão, galinha caipira, feijão, mandioca e saladas, a maioria produtos que foram produzidos ali mesmo, na casa. Para os internos isso representa a conversão exata de que o trabalho que eles desenvolvem traz bons resultados e os beneficiados são eles mesmos.
Após o almoço, tem a hora do descanso e a tarde é destinada a desenvolver atividades pessoais, como arrumar as próprias coisas no quarto, lavar a própria roupa. Em seguida tem a hora destinada ao culto religioso. Também tem horário destinado a assistir televisão e cada dia, um horário especifico. “A área da TV é compartilhada e eu deixo que assitam porque eles vão ter isso lá fora. Quando querem assistir a um jogo ou algo parecido, nós negociamos o horário para não atrapalhar quem quer dormir. A tentativa é que aprendam que podem jogar, assistir a um jogo, compartilhar uma conversa com os amigos e a bebida não precisa estar presente”.

Experiências
As primeiras tentativas de conversar com os que moram ali na casa foram frustradas. Ao nos aproximar de uma roda de conversa, ou de uma mesa de carteado, logo davam um jeito de fugir, uns alegando frio procurando um sol para se esquentar, outros iam para o quarto, outro grupo simplesmente se desfez e se reuniu em outro lugar como quando tocamos um bando de pássaros de uma árvore. Até que dois deles vieram conversar conosco.
Retomando o tratamento pela quinta vez, Seu Fernando (os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados) voltou a casa por vontade própria. Ele não é da cidade e antes de recair ele ficou dois anos sem beber. A dificuldade em formar as frases e ao contar como tudo aconteceu, pudemos detectar que a bebida já afeta o raciocínio e o tom baixo ao conversar demonstra a timidez e um certo medo ao revelar como foi acometido pela doença.
Ele conta que recentemente perdeu a mãe e que passou algum tempo cuidando da saúde dela. Depois do falecimento, ele contou que ficou com “umas coisas na cabeça” e ao reencontrar alguns amigos, acabou recaindo. “Mas voltei para cá, para me tratar. Melhorar minha condição. Tenho uma irmã, cunhado e sobrinhos, tenho uma casa que construí, mas aqui não dou trabalho para eles. Pago minha estadia com a aposentadoria que recebo, fui encostado por causa da bebida”.
Essa facilidade repentina de contar a vida dele não demonstra muita segurança, mas é possível sentir um certo orgulho de saber que na Casa da Solidariedade ele encontra apoio para se tratar da doença que ele mesmo reconhece atrapalhar a vida dele.
Já a experiência vivida pelo Seu Antônio remete a algumas lembranças tristes, emocionado, sentado à mesa que antes era tabuleiro de carteado, conta dos filhos, no total de quatro, dois falecidos, um preso e outra filha ele nunca mais a viu. Antônio tem problemas psicológicos e não pode sair da casa. Ele é interditado e fica sob a tutela da casa para tudo.
Há quatro anos ele mora ali e confunde-se nas próprias histórias que conta.Chora e reconta várias versões das coisas que podem, ou não ter acontecido com ele durante todo o percurso até chegar aqui.

Ajuda
Como a Casa da Solidariedade é uma entidade sem fins lucrativos, vive de doações da comunidade e das ações que promove. “Alguns internos encaminhados pela prefeitura, nós recebemos um repasse mensal do poder público, outros pagam com sua aposentadoria, ou a família faz o custeio, outros são sozinhos no mundo e precisamos ajudá-lo. Não é por causa de não poder pagar que não vamos atender, sempre damos um jeito e para isso precisamos da ajuda da comunidade”.
Todo e qualquer apoio à casa é bem vindo. Desde alimentação a produtos de limpeza, dinheiro ou um pouco de carinho. Assim como para quem vive lá, a casa permanece com os portões abertos para receber e transmitir toda solidariedade.
Quem quiser fazer doações ou passar um dia na casa pode ligar no número: 3387 3446 ou vir até a casa na Rua Morro Strassmann, 1200, no bairro Testo Rega.

Convocação
O Presidente da Casa da Solidariedade, Eduardo Coimbra, comunica que haverá Assembleia Geral Ordinária e convoca os membros dos conselhos administrativo e fiscal da Casa da Solidariedade para comparecerem, no dia 25 de julho, com primeira chamada às 17h e segunda chamada às 17h30min, na sede da entidade (Rua Morro Strassmann, 1200, bairro Testo Rega, em Pomerode. Na ocasião, será apresentada a prestação de contas do exercício de 2011, preenchimento das vagas do conselho fiscal e assuntos gerais.

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