ARTIGO
Trata-se de um estranho paradoxo, mas é uma realidade facilmente verificável: todos os grandes gênios e, talvez, todos os grandes artistas são infelizes, ou, pelo menos, tiveram uma infância ou uma vida inteira cheia de problemas, dúvidas e angústias.
Um mestre vanguardeiro
Trata-se de um estranho paradoxo, mas é uma realidade facilmente verificável: todos os grandes gênios e, talvez, todos os grandes artistas são infelizes, ou, pelo menos, tiveram uma infância ou uma vida inteira cheia de problemas, dúvidas e angústias. É isso que os leva a transpor para a sua arte toda uma pulsão vital além do comum.
Além disso, a própria criação é sempre uma atividade inconstante, arriscada, imponderável, incontrolável. Quem já tentou escrever um texto de grande responsabilidade sabe o que é a sensação daquela página em branco a desafiar-lhe os neurônios, as lembranças, as sinapses. O que dizer, então, de um artista que, cansado da mesmice e com ânsias de inovar, dar um salto, revolucionar, sabe que terá contra si toda uma tradição de séculos, de outros grandes gênios, de hábitos arraigados e sedimentados?
“O criador é um arqueiro que dispara na escuridão”, dizia o compositor austríaco Gustav Mahler, um exemplo de vanguardeiro que padeceu de todas as incompreensões que vitimam os que ousam ir além do seu tempo e inaugurar uma nova era.
Mahler não teve uma infância fácil. Seus pais se odiavam. O pai era extremamente violento, batia na mulher. Viu os pais e o irmão mais querido morrerem muito cedo, vendo-se, ainda jovem, na condição de chefe da família e responsável pelo sustento dos irmãos mais novos. Já adulto, a vida continuou sendo-lhe madrasta. Da mesma forma que a mãe, ele sofria de problemas cardíacos; sua filha morreu em 1907; era apaixonado pela esposa, Alma, que não correspondia ao seu amor. A infância difícil, numa família desestruturada, e os revezes da madureza, o influenciaram psicologicamente por toda a vida, fazendo com que ele levasse toda a sua raiva e angústia para a sua música.
“Sou três vezes apátrida! Como natural da Boêmia, na Áustria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro. Em toda parte um intruso, em nenhum lugar desejado”, chegou a dizer certa vez.
Na passagem do século 19 para o século 20, num mundo em rápida transformação, Mahler fez com sua música a transição do fim do romantismo para o surgimento da vanguarda. Com ele surgia o Expressionismo, cortesia da psicanálise e do efervescente cenário intelectual da Viena, que certamente tumultuava a mente de um compositor preso entre dois mundos e que, ao mesmo tempo em que absorvia toda a tradição, apontava para uma nova música, desesperado para encontrar própria voz, ainda que, para isso, tivesse que romper os limites da tonalidade.
É por isso que na música de Mahler convive toda sorte de dualidades e contradições. O amor é redenção, mas também caminho do sofrimento; o homem sente a natureza, mas ela o oprime; a morte é a certeza da vida, mas a vida é o que torna a morte certa; a arte revela o homem perante o mundo, mas é a ela que se deve voltar no momento em que, cansado, o homem se volta a si mesmo; em um turbilhão de transformações, o homem sente profundamente o mundo à sua volta mas, no final, o que fica é a certeza do desapego, do não pertencimento; a crença na reencarnação, na mística divina, vira resignação perante o desconhecido.
Em sua magnífica “Sinfonia nº 2”, Mahler tenta responder à questão: “Como seguir vivendo, como encontrar sentido na vida”. Inicialmente, descreve gritos de desespero, vozes que nos chamam desde o mundo selvagem, adiando a conclusão – a certeza da presença divina, dando vazão a toda a sua mística e apostando na reencarnação, em uma vida após a vida. A música do final da sinfonia faz com que, ao ouvi-la, não se consiga pensar em nada que não em paz e amor, como se a morte não existisse.
Neste sábado, 7 de julho, os amantes da boa música celebram os 152 anos de nascimento do mestre vanguardeiro Gustav Mahler.
Por: Luiz Henrique da Silveira
Senador da República