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Anorexia vitima pomerodense

Após 11 anos de tratamento, Elisângela Marcelino, de 37 anos, não resistiu à doença e morreu pesando, aproximadamente, 43 quilos.

1 de junho de 2015

Sempre acompanhamos notícias em que jovens são acometidos por doenças ou distúrbios da alimentação. Entretanto, quando nos deparamos com a situação perto de nós, ficamos atentos. Natural de Pomerode, Elisângela Marcelino faleceu, no dia 11 de julho, em Florianópolis.
“Estava mesmo pensando em procurar vocês. Quero contar como é essa doença horrível para outras famílias possam começar o tratamento cedo e não passar pelo que passamos”, assim inicia a entrevista a senhora Regina Marcelino, referindo-se ao tratamento que acompanhou a filha durante 11 anos.
Elisângela era uma criança e adolescente normal. Segundo a mãe, Dona Regina, a filha começou a apresentar os sintomas da doença em casa, quando pediu para ir ao médico e a ele reclamou que o intestino não funcionava direito. O médico então receitou um laxante leve e recomendou que ela tomasse apenas uma colher de chá por dia. “Ela comprava um pote a cada três dias. No início a gente não sabia que esse tipo de doença existia, ela tinha apenas 15 anos”, relata D. Regina.
Na entrevista também estava presente a tia de Elisângela, Darcy Marcelino. Ela relatou que a sobrinha cativava facilmente as pessoas e tinha facilidade em se relacionar. “Ela praticamente manipulava a gente, fazia com que tudo saísse do jeito dela. Uma amiga da minha filha contou que quando estudava na mesma escola da Tuti [Elisângela], viu-a dar o todo o lanche que levava para os colegas comerem”.
Como era previsto, a emoção esteve presente em todos os momentos da entrevista, mãe e tia se mostraram cúmplices de muitas outras cenas tristes. Cenas que muito se parecem com as de um filme, no qual não queremos acreditar que tudo isso é possível.
O diagnóstico da doença veio em 2001, quando Elisângela tinha 26 anos e pesava 20kg. Anorexia nervosa. A mãe conta que a filha somente fazia o uso de laxantes e comia muito pouco. D. Regina peregrinou nas farmácias da cidade, dizendo que Elisângela estava proibida de comprar medicamentos sem receita médica. “Ela ia a Blumenau comprar”.
A tia, Dona Darcy, lembrou que Elisângela comia muito pouco. “Quando ela ia ao restaurante, chegava às11h, escolhia o que comia, a maioria das vezes era alguns fiapos de alface, ou três grãos de ervilha, três grãos de arroz e um pedacinho pequeno de carne de frango. Ali ela ficava até às 13h, mastigava como se colocasse um garfo cheio de comida, pedia ainda um guaraná light”.
Em 2001 foi quando começou o tratamento. Todo pelo SUS, nunca lhe faltou psicólogo, psiquiatra, médico e nutricionistas. Elisângela sempre teve acompanhamento. No mês de agosto de 2008, ela estava novamente com 20kg e foi internada no Instituto São José, de onde saiu somente em março de 2010.
Foi nesse momento em que a família foi orientada a pedir auxílio jurídico. Primeiro foram assistidas por um procurador do município e depois a causa ficou sob os cuidados da Advogada Vera Goerl. Quando Tuti ainda estava internada, no ano de 2009, o pai dela faleceu, com isso, Dona Regina alugou a casa da família para poder ter uma renda por mês e assim pagar as contas, cuidar da filha, pagar o aluguel da quitinete e outras despesas.
Quando perguntamos à mãe se antes de pedir pelos laxantes, Elisângela apresentava outros sintomas, ela revelou que eles nunca notaram nada. “Ela era sim muito vaidosa e perfeccionista. Quando penteava os cabelos, mal mexia a cabeça para não desalinhar; quando dobrava a manga de uma blusa, por exemplo, esta deveria estar milimetricamente ajustada”.
A mãe conta que a filha não apresentava outras doenças, que ela era saudável. Elisângela teve três empregos, no último, em 2004, foi auxiliada pelos patrões para receber o benefício da Previdência Social, ela foi “encostada” em virtude da anorexia.
A paciente sabia que apenas dependia dela para superar a doença. Já na segunda internação, que iniciou em fevereiro de 2011, alguns fatos marcaram a família. Com as lágrimas tomando os olhos, Regina lembra um episódio triste. Ela conta que a filha, quando alguém levava comida para ela, pedia para comer sozinha, mas na verdade ela jogava a comida fora. “Do banheiro do quarto, olhei pelo espelho. Ela pegava a comida com o garfo, cheirava e jogava em uma sacola; depois, dentro de um recipiente que tinha do lado da cama. Ela não comia. A enfermeira contou que quando a alimentação era feita por sonda, ela tirava a sonda, deixava sair um pouco, depois a reconectava. Tudo para não engordar”.
Nesta última internação, que iniciou no começo ano passado, Elisângela estava em Florianópolis, no IPQ, entrou com 23kg e uma semana antes de morrer pesava 43 kg. “Os médicos aguardavam ela se recuperar até os 46kg. Não contavam mais para ela quanto ela estava pesando porque para ela, o ideal seria pesar 40kg. Ela brigava com os médicos”.
Na semana da morte, a paciente foi transferida para o Hospital Universitário, a mãe foi solicitada para levar os documentos da filha e proceder a internação. Mas não haviam vagas na UTI para atender Elisângela. Foi quando faleceu, na quarta-feira, dia 11 de julho. “Ela não se ajudou”, finaliza Regina que nem conseguiu se despedir da filha em meio às burocracias que a impediram de vê-la no hospital da capital.

Quando a medicina age
Diante desse caso, procuramos profissionais da área da saúde que pudessem orientar nossos leitores a realmente fazer o que a Dona Regina pediu no inicio da entrevista: divulgar, repassar informações para que outras famílias saibam como reconhecer a doença e iniciemo tratamento mais indicado. Os entrevistados foram: Franciane Péterle de Assis da Silva (psicóloga), Geliandro Fideles Ribeiro (nutricionista) e Thomaz Sperb (médico psiquiatra).
O primeiro ponto que abordamos na entrevista foi como reconhecer a anorexia. Ambos os entrevistados relataram que os critérios de diagnóstico que são utilizados é a perda de peso excessiva, prática exagerada de exercícios físicos e amenorreia (interrupção da menstruação por três meses ou mais). Essa doença atinge principalmente mulheres com idade entre 15 e 18 anos.
Os primeiros relatos de existência dessa doença são do século XVII, mas somente começou a ser tratada como tal no século XIX.
Em casa é que os primeiros sintomas podem ser percebidos. Por exemplo, quando o jovem reduz consideravelmente a quantidade de comida que ingere, quando prefere comer sozinho, evita eventos onde há refeições, ou fica brincando com a comida do prato, disfarçando comer, ou ainda quando guarda a comida que fingiu comer e depois joga fora, faz uso de purgantes e laxantes excessivamente.
“A família tem papel fundamental no momento de perceber esses sintomas, deve principalmente ficar atenta à perda de peso em curto prazo e a repulsa por alimentar-se” fala o psiquiatra.
O tratamento envolve uma equipe multidisciplinar e quanto mais cedo começar mais chances de sucesso. “Levamos em consideração que hoje cerca de 10% dos pacientes que são diagnosticados com anorexia nervosa não são curados. Isso para qualquer doença é um índice muito alto”, completa Sperb.
Com relação ao processo de tratamento, trata-se de um campo muito difícil, uma vez que para o anoréxico, ele não está com doença alguma e apenas enxerga-se acima do peso. “Do ponto de vista do tratamento psicológico, nós temos que trabalhar praticamente contra o paciente. Não somos nós lutando contra a doença, fazemos ele lutar contra o que acredita ser normal. É trabalhado principalmente a reestruturação cognitiva do paciente, fazer ele ver novamente a realidade”, relata Franciane.
O nutricionista Geliandro destaca que o paciente anoréxico é muito inteligente. “Muitas vezes entende e sabe mais sobre calorias e valores energéticos dos alimentos que o próprio nutricionista. Porque ele estuda, ele pesquisa e busca conhecimento sobre o assunto. O que procuramos enfatizar é mostrar o valor de cada alimento, e relacionar a quantidade necessária para uma vida saudável e fazer o paciente ver quão defasada está a dieta adotada por ele para chegar ao ‘peso ideal'”.
O internamento é necessário quando o doente não está recuperando peso e sim perdendo. Ou seja, quando o tratamento convencional não está surtindo efeito. A internação em unidades de saúde visa reestabelecer o peso, as condições nutricionais desse paciente, que muitas vezes já apresenta sinais de fraqueza e deficiência de nutrientes essenciais.
Em todo o processo a família é fundamental, desde a percepção dos primeiros sintomas ao acompanhamento do tratamento, regulação da alimentação, dos medicamentos… “é importante que os amigos e a família reconheçam pequenas conquistas, elogiem a forma, a saúde, cada etapa de recuperação. Nesse momento críticas e insultos podem retroceder todo tratamento ou até agravar um quadro”, relata Franciane.
Nesse contexto, a família deve prestar atenção ainda na prevenção, como destaca Thomaz Sperb: “Agressões físicas e verbais devem ser evitadas. Xingamentos como ‘feia’, ‘gorda’, podem desencadear transtornos alimentares e psicológicos. O foco principal deve ser na prevenção e se notar qualquer atitude diferente, procurar e conversar com um profissional que irá orientar”.
A causa dessa doença pode ser determinada por uma junção de vários fatores. Uma discussão familiar, uma comparação entre colegas de escola, uma decepção amorosa, padrões sociais de beleza feminina.
Vale ainda salientar que não são todas as pessoas magras, ou pessoas que comem pouco que apresentam essa doença. Como citamos, é um conjunto de fatores que vão defini-la. O que o psiquiatra comenta é que se tal atitude, ou ação não interferir na qualidade de vida, ou na manutenção da saúde dessa pessoa, pode não ser uma doença. Mas quando uma mania, uma atitude interferir no relacionamento dessa pessoa, na vivência e na saúde dela, isso sim deve ser tratado.

Quando a Justiça precisa intervir
No caso de Elisângela Marcelino, por já ser maior de idade, a família teve que procurar ajuda da Justiça. Como ela não poderia ser internada à força, os pais buscaram o Procurador de Justiça do Município que lhes indicou o caminho para proceder a interdição da filha.
Como a família é carente, a advogada Vera Maria Fabris Goerl, por ser vinculada à Assistência Jurídica Gratuita, foi indicada pelo Estado para proceder o processo. “A lei 2216/2001 prevê que o doente mental tem direito a tratamento, mesmo quando compulsoriamente. A interdição é feita quando este doente, maior de idade, não tem condições de gerir a própria vida”, explica Vera.
Esse processo é complexo e envolve muitos profissionais. Em uma audiência o Juiz avalia os laudos médicos, demais documentos comprobatórios e ainda o paciente, para determinar a interdição dele. “Isso foi o que aconteceu no caso de Elisângela. A família entrou com o pedido e o juiz reconheceu. Dessa forma ela foi internada compulsoriamente”.
A advogada ainda recomenda que em muitos casos, não somente os semelhantes ao da personagem citada que, as famílias procurarem serviços gratuitos e de qualidade. “Em Pomerode temos uma estrutura fantástica e que funciona corretamente, desde assistência social ao tratamento clínico eficaz”.

Quando a ajuda vem em tempo
Através de nossos leitores ficamos sabendo de mais um caso de anorexia nervosa em Pomerode. Desta vez com uma adolescente e que devido encaminhamento rápido e correto feito pela família já é considerada curada.
Essa jovem que aqui vamos chamar de Maria, um dia chegou para a mãe e comentou que queria emagrecer. A mãe, querendo ajudar, comentou que a filha então poderia reduzir a quantidade de alimento que ingeria à noite.
“Logo percebi que Maria não comia mais. Ela colocava pouquíssima comida no prato e mastigava com gosto, como se tivesse uma quantidade enorme de comida na boca”, disse a mãe, Ana.
Ana comenta que logo a filha começou a perder pesoa. De 66 kg, ela passou para aproximadamente 34 kg no prazo estimado de dois meses. A mãe, para conseguir que a filha passasse por tratamento, falou a ela que precisava ir ao médico fazer alguns exames de rotina. “Assim começamos o tratamento. O médico receitou vitaminas, acompanhamento psicológico e nutricional. Ela chegou a prometer ao médico que iria voltar a comer, mas isso não aconteceu”.
Quando Maria não apresentava recuperação de peso, ela foi internada no Instituto Santo Antonio, em Blumenau e lá permaneceu durante 29 dias. Hoje, com 55kg e 1,64m de altura, ela está recuperada e reconhece que estava doente. “Hoje ela olha para mim, para a família e diz: como eu consegui fazer isso? Eu realmente estava doente” comemora a mãe emocionada.
* Nesta matéria foram trocados os nomes dos personagens a fim de preservar a identidade da família.

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